terça-feira, 22 de novembro de 2011

Audiência pública preparatória para a Rio+20


Nesta segunda-feira, 21, a Comissão de Saúde e Meio, presidida pela deputada Marisa Formolo, realizou audiência pública preparatória para a Rio+20. Eis o pronunciamento do Irmão Antônio Cechin, sobre os catadores:



Vivemos a era do lixo
Necessidade de políticas públicas

por Irmão Antônio Cechin*

Um professor e pesquisador da universidade de Campinas (UNICAMP) tem um artigo intitulado “O triunfo do lixo”.
Começa seu artigo afirmando “se a humanidade vive a era do conhecimento, vive também a era do lixo. Do ponto de vista da quantidade, a natureza movimenta, em seu ciclo normal, 50 bilhões de toneladas de materiais por ano. Os homens, por sua vez, movimentam 48 bilhões de toneladas-ano. Destes 50 bilhões, 30 bilhões são de lixo.
Naturalmente, o lixo é problema em todos os países do mundo. A humanidade está gerando cada vez mais lixo. O Brasil é um dos que mais sofrem com este problema. Na escala da humanidade, o Brasil ocupa, proporcionalmente à sua população, um dos primeiros lugares. Ele é um dos maiores geradores de lixo. Nossa população nacional equivale a 3,06 % do total mundial e seu produto interno bruto (PIB) corresponde a 3,5 % da riqueza global. Porém os brasileiros descartam 5,5 % do lixo do planeta.
Entre os anos de 1991 a 2000 – os últimos 10 do milênio – a população brasileira cresceu 15,6 %. No mesmo período, o país ampliou seus descartes em 40 %. Em 2009, o aumento da população foi da ordem de 1 %, porém a geração de rejeitos aumentou 6 %. O lixo cresce hoje, no Brasil, seis vezes mais que sua população. Trata-se de uma expansão perversa.
Face ao lixo nossos governos não agem. A sociedade não faz a sua parte e o cidadão individualmente não se movimenta. O resultado dessa combinação é dramático. A continuar assim, o lixo vai inviabilizar a sociedade humana. Se o primeiro dilúvio do mundo foi de água, vem aí o segundo, o do lixaredo, especialmente o dilúvio de plástico.
Os únicos que tem trabalhado em favor da sociedade são os catadores de lixo, que em vez de serem parabenizados, são discriminados e maltratados tanto pelas elites quanto pelo poder público.
Para se ter uma idéia, dos resíduos secos gerados no país, 13 % são recuperados. Destes, 98 % são coletados pelos catadores e apenas 2 % pelos programas de Coleta Seletiva de Lixo. Em 2010, pasmem, dos 5.565 municípios brasileiros, somente 142, ou 2,5 % do total, mantinham algum tipo de parceria com esses trabalhadores da catação. Eles são os grandes heróis nacionais do meio ambiente, uns autênticos PROFETAS DA ECOLOGIA, fazendo sua pregação concreta em ruas e praças de nossas cidades.
O problema do lix0o é complexo. Envolve absolutamente todas as pessoas do mundo e todas as instituições possíveis e imagináveis. Tarefas inadiáveis se impõem. Deter-nos-emos nas três consideradas clássicas: 1) REDUZIR a quantidade de lixo; 2) REUTILIZAR tudo o que for possível que rola no lixo; 3) RECICLAR. São os famosos 3 R: reduzir, reutilizar e reciclar.
Em questão de RESÍDUOS SÓLIDOS, como já dissemos, o CARA é o CATADOR. Ele é o Herói, o Profeta da Ecologia e o Médico do Planeta. É o cidadão 3 erres!... De pária da civilização urbana, de mendigo, de faminto na maioria das vezes vítima de êxodo rural, acuado pela fome, começou a vasculhar lixeiras em busca de restos de comida e aos poucos deparou com algo mais. Constatou que jogadas fora estão coisas que tem valores, que ainda servem para alguma coisa. Mudou a própria definição daquilo que se designava pela palavra lixo a ser descartado absolutamente. Grudou-se às lixeiras em vez de roubar ou assaltar. Recusou-se a mendigar um pedaço de pão junto ás portas das casas. Diferentemente do normal dentro do capitalismo, sem capital nenhum, com investimento zero, arranjou seu próprio emprego: o de catador, profissão ainda não regulada. O catador é um sobrevivente graças ao lixo. Auto-erigiu-se à categoria de cidadão, virou caminhante por ruas e vielas das cidades. Perambula teimosamente decidido a não se transformar em mais um consumista e produtor em excesso de descartáveis. Quando ORGANIZADO em coletivos de trabalho pode ajudar em transformar simples coletivos em Comunidades Ecológicas de Base, Ecumênicas de Base e até Eclesiais de Base. Desencadeia todo um processo produtivo capaz de ir ao encontro de verdadeira cordilheira dos Andes formada de montanhas de lixo. Ele já recolhe atualmente, no Brasil 92 por cento de todo o lixo destinado à reciclagem contra apenas 6 % do recolhido por toda a máquina da tão decantada parafernália dos governos municipais. Como se poderia negar-lhe o epíteto de SENHOR REDUTOR por excelência de Lixo? Isso naturalmente se fosse instituído um prêmio em favor de quem trabalha duro como na parábola do beija-flor que com seu biquinho sua em bicas para extinguir florestas assoladas por incêndio. Através da TRIAGEM, com suas mãos movidas diretamente a energia solar, é o profissional da despoluição planetária. Foi o primeiro a trilhar, no Brasil, o CAMINHO DO SOL que é fonte única de todas as energias limpas ou suaves do planeta TERRA.
Andamos necessitados, no trabalho com catadores, de POLÍTICAS PÚBLICAS, em primeiro lugar a fim de que todos os que produzem lixo, sem exceção de espécie alguma, colaborem com os catadores no sentido de diminuir a produção de descartáveis.
Quando a sociedade humana era quase totalmente rural não existia lixo. No campo não existe lixo.
Hoje infelizmente, não existe mais a roça ou o campo. Tudo no planeta é urbano ou no mínimo rur-urbano principalmente por causa das EMBALAGENS que invadiram absolutamente todas as regiões. Sem embalagens, o consumismo nas compras praticamente não existiria.
Leis devem obrigar a todo cidadão a separar lixo seco de lixo orgânico, num primeiro momento.
Num segundo momento, parte do lixo orgânico não deve sair para a rua para os containers como os que acabam de ser criados em Porto Alegre e que estão sendo incendiados.
Dou um exemplo: lá em casa, somos dois manos. Na sacada do apartamento temos uma caixa em que colocamos tudo o que é vegetal que antes era descartável. É o nosso minhocário. Trabalhando em periferias, havíamos feito uma experiência na cidade de Canoas. Pesquisando sobre as despesas relativas à alimentação dos operários, descobrimos que 70 % delas eram com vegetais como saladas e frutas extraídas da terra. Destinando o que é vegetal para o minhocário, além de produzir TERRA VIVA, diminuímos em 70 % nosso lixo residencial porque uma parte dele vai para a coleta seletiva e a outra para as minhocas. Nem é preciso ter uma sacada para a façanha. Uma gaveta de uma cômoda resolve admiravelmente o problema. Transformamos o problema lixo em solução para os catadores e ao mesmo tempo para as despesas da prefeitura que faz a coleta, porque só mandamos para a rua 30 % do que mandávamos antes.
Inteligente é a Lei dos Resíduos Sólidos do ex-presidente Lula que hoje deve ser a inspiradora de todas as políticas públicas em torno do assunto. Essa lei coloca nas mãos dos COLETIVOS de trabalho dos catadores, toda a cadeia produtiva de resíduos sólidos desde a coleta seletiva, passando pela triagem, a prensagem, o artesanato de sucata, a fabricação de novos objetos, a central de vendas, etc.
Existe na praça uma fantástica oferta mão de obra disposta a trabalhar em resíduos sólidos. Ela está espalhada por toda a cidade, desde as periferias até o centro. E dizer que só existem em Porto Alegre, 17 coletivos de trabalho atendendo, no máximo a uns 600 catadores. A maioria dos ditos galpões não obedece às mínimas condições para um trabalho digno. Em cada bairro, em cada comunidade, dever-se-ia ter o correspondente local de beneficiamento dos resíduos sólidos. Eles, os próprios catadores começando pela coleta em seu próprio bairro ou comunidade.
Imaginemos a mão feminina que significa 95 % da população catadora, com um carrinho criado pela Itaipu binacional em que a mulher não dispende nenhuma energia humana para movimentar, indo com este carrinho de porta em porta falando sempre com outra mulher que é dona de casa, dentro do princípio de que “mulher com mulher se entende” explicando a separação em lixo orgânico e lixo seco e passando diariamente nas mesmas casas para a coleta. Existiria no mundo outra melhor e mais perfeita educação ecológica do que esta feita pelas casas de boca a boca?
A REUTILIZAÇÃO dos materiais depois de separados se dá pela devolução de objetos em condições para isso, tais como garrafas de vidro, frascos em geral e outros tipos de objetos. Dá-se também através de artesanato bem montado junto a cada coletivo, como por exemplo a fabricação de sabão com resíduos de óleo de cozinha, fabricação de papel, trituração de plástico a partir de moinho caseiro, e mesmo outra etapa que é a fabricação de matéria prima plástica através de uma estrusora. Isso já havíamos conseguido 30 anos atrás em alguns dos galpões existentes na época. Se ao lado de Galpões de Catadores temos uma rede de unidades diversificadas em regime de economia solidária, tudo fica mais fácil.
A RECICLAGEM que unifica toda a cadeia produtiva em questão de resíduos sólidos através de coletivos necessita naturalmente de assessorias preparadas tecnicamente e pedagogicamente. Do contrário, a partir das relações de exploração que é o apanágio do sistema capitalista, os coletivos de trabalho tendem a imitar o modelo capitalista avassalador. Hoje o novo, a grande alternativa ao capitalismo, é o estabelecimento de relações interpessoais ricas entre os que trabalham em um mesmo galpão. É só com solidariedade e trabalho em mutirão, que gente pobre passa a se relacionar em sadia relação de colaboração, como autênticos irmãos à semelhança do que existiu no Brasil e que ainda continua a existir entre índios e quilombolas, modelos da economia solidária com que sonhamos.
Concluindo: o personagem-chave da solução do problema do lixo no Brasil, é o catador enquanto organizado em coletivos de trabalho, não descartando, porém o catador como trabalhador isolado buscando sustento para sua própria família. Como tal deve ter seu trabalho respeitado, dignificado e ser sujeito de políticas públicas que lhe forneçam as melhores e mais vantajosas condições de formação e trabalho.
As soluções que o sistema capitalista propõe e que passam por cima do trabalho e dos interesses dos catadores tem o vício de origem de serem apenas com intenções lucrativas e eminentemente anti-ecológicas como é por exemplo o caso das empresas incineradoras de lixo, mesmo as produtoras de energia. Através da incineração acaba-se com qualquer resquício de vida nas cinzas. Isso fere o princípio de toda a verdadeira ecologia: “tudo o que vive merece viver”. Em materiais orgânicos produzidos pela natureza, mesmo nos descartados, sempre restam milhões de células vivas. Se devolvemos nem que seja apenas uma célula viva à Mãe Terra, a natureza agradece. Além disso, queimando milhares de toneladas de lixo, uma incineradora acaba tornando inviáveis milhares de empregos para catadores. É toda uma mão de obra que voluntariamente se apresenta para o novo de uma economia solidária, alternativa ideal para a economia capitalista de classes irreconciliáveis porque estabelece sempre relações de exploração.
Meus amigos e minhas amigas:
Oxalá se abram alas aos atuais PROFETAS DA ECOLOGIA: catadores carrinheiros através de ruas e praças e catadores galponistas organizados em coletivos de trabalho! Os catadores do Brasil, conforme estimativa somando em torno de um milhão e quinhentos mil, pedem passagem!

*Antônio Cechin nasceu em Santa Maria/RS, no dia 17 de junho de 1927 e é Irmão Marista, miltante dos movimentos sociais, fundador da CPT RS, Pastoral da Ecologia e da ONG Caminho das Águas e autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.

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